Um ambiente de terror.
Foi esse o cenário encontrado pelo policial Samuel Rocha, investigador do departamento de homicídios da polícia civil de São Paulo, ao entrar no cômodo e encontrar o corpo de um rapaz nu, caído de costas sobre o carpete do quarto, envolto em uma poça de sangue.
Apesar de ter visto diversas cenas de crime ao longo de dez anos de experiência na polícia, o investigador de trinta e sete anos ainda se chocava com a brutalidade com que alguns desses crimes eram cometidos. E aquele, tanto pela pouca idade da vítima, quanto pela forma como o crime foi cometido, era, sem dúvida, o que mais comoveu o investigador.
Enquanto a equipe de perícia fotografava o corpo do rapaz, Samuel analisava com muita atenção o cenário do crime.
O investigador percebeu que aquele ambiente espaçoso era o quarto da vítima. A arrumação da cama de casal indicava que ela não havia sido usada naquela noite, o que descartava a possibilidade de o assassino ter tido relações sexuais com a vítima. Pelo menos, não naquele móvel.
Dois criados-mudos com abajures estavam dispostos em cada lado da cama. Em um deles, havia um telefone celular que, provavelmente, pertencia à vítima. O investigador Rocha retirou um saco do bolso da calça e colocou o aparelho dentro. Em seguida, entregou-o a um policial que estava realizando uma vistoria no local.
No quarto, ainda havia uma escrivaninha com objetos espalhados, inclusive pelo chão, indicando que o jovem foi arremessado contra o móvel. Samuel notou que, entre os objetos que estavam na escrivaninha, havia uma impressora, um notebook, papéis sulfite, grampeador e um porta-lápis, que continha, além de canetas e lápis, dois estiletes de cabo azul.
Próximo à escrivaninha, havia uma cadeira preta, própria para gamers. Ao lado, estava um ring light com tripé, com a luz ainda ligada. No centro luminoso, o investigador encontrou mais um telefone, que, provavelmente, era usado por Robel para gravar os seus vídeos. Antes mesmo de Samuel chegar ao aparelho, um policial o recolheu para a perícia.
Assim que a equipe de peritos se afastou, Samuel se aproximou para examinar mais de perto o cadáver. De acordo com sua análise, era um jovem, de aproximadamente vinte anos, de pele clara e cabelos loiros. O garoto apresentava vários hematomas pelo corpo e pelo rosto, provavelmente causados pelo espancamento. Mas não foram as lesões no corpo que o levaram à morte. O investigador pode notar que havia um corte profundo no pescoço da vítima, provocado por um objeto cortante.
— O garoto teve seu pescoço rasgado — disse uma policial que se aproximava de Samuel.
Enfatizando o que era óbvio para qualquer leigo.
— E a arma do crime é este estilete encontrado sobre o cadáver.
A policial estendeu a mão em direção a Samuel, entregando-lhe um saco plástico contendo um canivete ensanguentado.
Após uma breve análise, o investigador percebeu que a arma usada para cometer o crime era idêntica aos outros dois estiletes encontrados sobre a escrivaninha.
— Pelo visto, o assassino utilizou o estilete da vítima para executar o crime, o que descaracteriza qualquer possibilidade de premeditação. O que já se sabe sobre a vítima, Almeida?
Aline Almeida, ou investigadora Almeida, como era conhecida na corporação, era uma mulher bonita, com um metro e setenta e seis de altura, pele negra, cabelos pretos que mantinha presos e um corpo escultural que ela escondia sob o uniforme pesado. A policial, de vinte e sete anos, era a mais jovem entre os colegas, o que a obrigava a trabalhar dobrado para ser ouvida e respeitada pelos outros policiais. E isso ela fez com perfeição. Tanto que, devido às suas habilidades e coragem diante de situações de perigo, ela foi nomeada para ser a segunda no comando, depois de Samuel.
Assim que abriu seu bloco de anotações, Aline relatou ao investigador Rocha o que havia apurado até aquele momento.
— A vítima é Ronaldo Werner Bergel, conhecido como Robel, de vinte anos. Robel era um influenciador digital que produzia conteúdos direcionados aos jovens gays. Pelo que pude ver, o garoto era muito querido pelos seus milhares de seguidores.
— Ainda assim, é importante verificar as suas redes sociais para encontrar possíveis haters — disse Samuel, retirando as luvas de silicone e colocando-as no bolso. — Quem encontrou o corpo?
— A irmã, Tatiana Bergel. Ela está no andar de baixo, conversando com o delegado.
— Vou até lá acompanhar esse depoimento. Fique atento ao trabalho da perícia, Almeida. Não podemos deixar escapar nenhuma evidência.
— Deixa comigo, Rocha. — Aline assegurou antes de seu parceiro deixar o cômodo.
O investigador Rocha desceu as escadas que dão para a sala de estar. Durante a descida, ele observou uma jovem de cabelos castanhos claros e levemente ondulados, aparentando estar bastante abalada, sentada em uma poltrona. Em pé, estava o delegado conversando seriamente ao telefone.
Samuel olhou para as janelas fechadas e percebeu que os primeiros raios de sol já estavam entrando no ambiente através das frestas das cortinas.
O policial, então, desceu o último degrau e foi à janela próxima à testemunha, segurando as cortinas.
— Eu não faria isso se fosse você — advertiu um policial que estava vigiando o ambiente.
— E, por que não?
Samuel ignorou o alerta do policial e abriu as cortinas para que a luz do dia penetrasse no ambiente.
Foi então que, ao olhar para o lado de fora, o investigador pôde compreender o alerta do policial. A rua em frente à residência estava tomada por uma multidão comovida que, com seus telefones celulares em punho, registrava toda a movimentação.
— Parece que algum vizinho vazou a notícia — o policial respondeu. — Em pouco tempo, uma multidão se formou na frente da residência. E está crescendo cada vez mais.
— O meu irmão era muito querido pelos seus seguidores — disse a garota, com os olhos azuis banhados pelas lágrimas que escorriam pelo rosto, que, apesar de desfigurado pela dor, era de uma beleza extraordinária.
— Tatiana, esse é o investigador Samuel Rocha — disse o delegado, guardando o telefone celular no bolso da calça. Ele será o policial que irá investigar a morte de seu irmão.
— Sinto muito pela sua perda, Tatiana — Samuel disse, demonstrando compaixão pela dor da garota.
O delegado Costa agarrou o investigador Rocha pelo braço, puxando-o para uma conversa particular.
— Espero estar deixando esse caso em boas mãos, Rocha.
— Tenha certeza de que farei o meu melhor, senhor.
— É o que espero. Como você pode perceber, pela multidão do lado de fora, esse caso já está tendo muita repercussão. Esse garoto era bastante conhecido no meio digital. Dessa forma, tanto a imprensa quanto os seus milhares de seguidores continuarão pressionando para o culpado ser encontrado o mais breve possível.
— Não se preocupe, senhor. Sei lidar com pressões.
— Ótimo! Aguardo o seu relatório, no máximo, até amanhã à tarde. Bom trabalho, investigador.
Assim que o delegado saiu, o investigador Rocha se sentou em um sofá de cor marfim que ficava em frente à poltrona, da mesma cor, em que a jovem estava.
Entre o sofá e as poltronas, havia uma mesa de centro com um tampo de vidro e, sobre ela, uma caixa de pizza aberta, que estava fria e intocada.
— Meu irmão adorava pizza de calabresa — a garota disse, percebendo o interesse do policial na caixa. — O pobrezinho nem teve tempo de comer essa.
Depois de uma breve anotação, Samuel retornou à garota.
— Além de você e seu irmão, quem mais residia nesta casa?
— Apenas nós dois — a garota respondeu. — A nossa família é de Campinas. Há seis meses, Robel decidiu se estabelecer em São Paulo para tentar a carreira de ator. Ele estava se dedicando a isso e, graças a um movimento criado por seus seguidores, foi convidado a fazer um teste para um filme dirigido ao público jovem. Meu irmão estava entusiasmado com o novo trabalho, tanto que não falava em outra coisa nas redes sociais.
— Foi você quem encontrou o corpo, certo?
— Sim — Tatiana confirmou com uma voz quase sussurrada. — Assim que cheguei em casa, encontrei a porta aberta e a sala bagunçada. Percebi, então, que havia algo de errado. Com medo de que o meu irmão pudesse ter sofrido alguma coisa, fui até o quarto — a garota fez uma pausa antes de prosseguir, dessa vez, aos prantos. — Só não esperava encontra-lo daquele jeito. Meu pobre irmãozinho!
Samuel, apesar de comovido com o sofrimento da garota, permaneceu firme e prosseguiu com o seu interrogatório.
— Sei que está sendo muito difícil para você. Mas eu preciso fazer mais algumas perguntas.
— Tudo bem — Tatiana disse, enxugando as lágrimas e se esforçando para permanecer firme. — Pode perguntar.
— Onde você estava na noite passada?
— Eu saí para dançar com o meu namorado. Por volta das quatro horas da manhã, ele me deixou em casa e seguiu para Campinas.
— O Seu namorado, então, é de Campinas — concluiu o investigador, continuando com as suas anotações.
— Sim. A nossa relação já existia antes de eu vir morar com meu irmão em São Paulo.
— O seu namorado não quis ficar aqui com você? Ele decidiu por seguir viagem após passar a madrugada numa festa.
— O Marcos, geralmente, fica. Só que, hoje, ele não pôde, pois tinha um compromisso importante em Campinas. Ele só veio porque era aniversário de um amigo.
— Marcos — Samuel repetiu, apontando em seu bloquinho. — Marcos de quê?
— Marcos Mafra. Ele é advogado e tinha uma reunião com um cliente marcado para essa manhã.
— Entendi. E quanto a seu irmão? — Samuel prosseguiu, focando naquilo que realmente era relevante para a investigação. — Ele tinha namorado?
— Não.
— Você saberia me dizer se ele se envolveu com alguém em um desses aplicativos de relacionamento?
— Que eu saiba, não. O meu irmão não precisava recorrer a esses aplicativos. O Robel era muito assediado na internet devido a seu conteúdo. Na maioria das vezes, ele gravava vídeos sensualizando para os fãs. Era comum que alguns deles trocassem mensagens com meu irmão e, consequentemente, se relacionassem. Mas Robel sempre deixou bem claro que era sem qualquer tipo de compromisso.
— Você acredita que algum desses admiradores tenha se sentido insatisfeito com o tratamento recebido por seu irmão?
— Acredito que não. Eles amavam o meu irmão. Jamais iriam matá-lo.
— Em minha profissão, já investiguei as maiores atrocidades praticadas por amor.
— Que horror! — Tatiana estremeceu só de imaginar.
— Seu irmão estava sofrendo ataques de haters?
— Não sei… acredito que sim. Todos as pessoas públicas estão sujeitas a isso, mas o meu irmão nunca comentou sobre nenhum ataque contra ele nas redes sociais.
— Bem. De qualquer forma, já pedi para que os equipamentos eletrônicos do seu irmão sejam examinados. Se houver algo que possa nos levar ao assassino, com toda a certeza eles o encontrarão.
— Com licença, investigador — disse uma voz feminina, aproximando-se de Samuel. — A equipe de legistas iniciou o processo de remoção do corpo da vítima.
— Obrigado, investigadora Almeida. Eu também já terminei por aqui — Samuel disse, levantando-se e guardando o seu bloco no bolso da calça. — Obrigado por sua colaboração, Tatiana. Em breve, convocaremos você para comparecer à delegacia para prestar o seu depoimento formal. Com licença.
— Há alguma ideia da motivação do crime? — Aline quis saber, logo que eles se afastaram da testemunha.
— O depoimento da testemunha não ajudou em muita coisa — o policial respondeu, olhando para a garota que permanecia sentada na poltrona. Se sentindo perdida diante daquela movimentação toda. — Tudo indica que se trata de mais um caso de homofobia. É possível concluir que a vítima estava à espera do assassino, tendo em vista que não há sinais de arrombamento na porta.
— Então, isso descaracteriza um crime de homofobia — a policial concluiu, contrariando a opinião do seu parceiro. — Como não há arrombamento, o crime pode ser passional.
— Não acredito que seja isso — o policial disse, olhando para o cenário ao seu redor. — A minha teoria é que o assassino teria se disfarçado como entregador de pizza para entrar na residência sem chamar a atenção. O criminoso teria começado as agressões ainda na sala. O garoto correu para o quarto para tentar se proteger, mas o agressor chegou antes que ele pudesse trancar a porta. Com toda a certeza o rapaz teria apanhado o estilete para se proteger, mas acabou sendo desarmado e novamente espancado, antes de ter o pescoço cortado.
— Sua teoria talvez até fizesse sentido, se o garoto não tivesse sido encontrado nu em seu quarto — a investigadora disse, contrariando a tese do parceiro. — Como você me explica isso?
— Esta é uma pergunta que ainda não sei responder. Vamos esperar o resultado da perícia para começar as investigações. Tudo o que quero agora é encerrar o meu plantão. Não vejo a hora de chegar em casa e cair na cama. De preferência, na companhia do meu namorado.
— Então, aproveita, meu amigo — Aline disse, acompanhando o policial até a saída da residência. — Eu ainda tenho algumas horas de trabalho pela frente.
— Então, Aproveite para dar um pronunciamento a esses repórteres. Sei que você adora uma visualização.
— Não faça isso comigo, Rocha — Aline disse, sem esconder a sua aflição. — Você sabe que eu não gosto de falar com a imprensa.
— São os ossos do ofício, minha cara —Samuel disse, entrando na sua viatura. — Boa entrevista, policial Almeida — Samuel gritou antes de sair com o carro, deixando Aline irritada.
[...]
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